Sobre o ensino da Astronomia

 

A Sociedade Portuguesa de Astronomia (SPA) é uma associação científica cuja missão é promover o desenvolvimento da Astronomia em Portugal. Sendo uma associação profissional, a SPA não descura a importância da formação de uma cultura científica, objectivo que passa necessariamente pelo ensino da Astronomia a nível básico e secundário.

Como consequência desta posição elaborou um documento onde apresenta a sua posição em relação a pontos fundamentais como as especificidades da Astronomia e do seu ensino, os programas curriculares e a relação entre comunidade escolar e Astronomia.

Apesar de este ser um trabalho de longa data, foi no início de 2012 que se estabeleceu um grupo de trabalho para concretizar as ideias e formar um documento que foi, num primeiro momento (a 16 de Janeiro de 2012), apresentado à Comissão Parlamentar para a Educação, Ciência e Cultura e num segundo momento (a 31 de Janeiro de 2012) enviado para a Secretaria de Estado do Ensino Básico e Secundário. 

Em Março de 2013, o grupo de trabalho envia propostas de alterações às metas curriculares para a disciplina de Física-Quimica do 7º ano de escolaridade. Nesse documento reafirma as linhas gerais que julga adequadas para o ensino da Astronomia.
 

Gostaríamos de ouvir a opinião dos professores que leccionam os contéudos de Astronomia no ensino básico e no ensino secundário. Veja aqui como contactar a divisão de Educação da SPA.

 

Sobre o ensino da Astronomia

 

Considerações elaboradas pela Sociedade Portuguesa de Astronomia (SPA) referentes à Revisão da Estrutura Curricular dos ensinos básico e secundário

 

Apresentação da Sociedade Portuguesa de Astronomia (SPA)

A Sociedade Portuguesa de Astronomia (SPA) é uma associação científica cuja missão é promover o desenvolvimento da Astronomia em Portugal. Criada em 1999, tem maioritariamente como sócios investigadores/docentes doutorados nas áreas da Astronomia, Física e Matemática trabalhando em colaborações nacionais e/ou internacionais em Portugal e no estrangeiro. Sendo uma associação profissional, a SPA tem também uma forte componente de divulgação, que considera ser de essencial importância para a saudável interacção da Ciência com a sociedade em geral. Uma faceta de extrema relevância nesta interacção é a formação de uma cultura científica, objectivo que passa pelo ensino da Astronomia a nível básico e secundário.

 

Especificidades da Astronomia

  • A Astronomia é intrinsecamente multi-disciplinar. Dominar os temas relacionados com a Astronomia carece de conhecimentos de Física (todas as suas vertentes, das mais fundamentais leis da Natureza à Geofísica ou à Física de Partículas), Matemática, Química, Geologia e até Biologia. As ferramentas usadas para fazer Astronomia envolvem conhecimentos de informática, óptica, mecânica, criogenia, electrónica, navegação, etc. A integração dos conceitos abordados na Astronomia nas demais áreas do saber tem consequências na Antropologia, na História e na Filosofia: a importância da Astronomia na construção da maior parte das sociedades humanas, por exemplo, assume-se como ponto central nos debates civilizacionais ao longo da História. Apresenta-se assim como um dos veículos para o ensino das várias ciências e ponto de relação com outras áreas do saber. Em sentido contrário pode servir também como ponto integrador e convergente destas mesmas áreas do saber. Como pano de fundo presente à maior parte dos conceitos com que lida, a Astronomia coloca questões que quando respondidas pelo indivíduo permitem expandir horizontes, desenvolver a imaginação, o espírito crítico, e construir uma liberdade de escolha consciente e informada.

  • Tradicionalmente, é uma área que desperta o interesse, a curiosidade e o fascínio dos mais variados públicos, como atestam o crescente número de grupos, associações ou clubes dedicados à Astronomia e o grande número de participantes nas inúmeras acções, cursos e actividades de comunicação que grupos associados a museus, centros de investigação, centros Ciência Viva, núcleos de divulgação e profissionais individuais têm desenvolvido na última década. Especial destaque para as actividades desenvolvidas, com enorme adesão, por todo o país no Ano Internacional da Astronomia 2009.

  • Por último, regista-se que esta área, como outras que tradicionalmente não fazem parte dos programas base das licenciaturas-base de formação, continua a ser um problema para muitos professores quando confrontados com a leccionação destes conteúdos, não obstante nos últimos anos, várias terem sido as iniciativas levadas a cabo para dotar os professores de formação na área da Astronomia. Destacam-se: o mestrado dedicado ao ensino e desenvolvimento curricular (Faculdade de Ciências da Universidade do Porto), os cursos creditados em diversos centros de formação, presenciais ou não; a disponibilização de variados recursos nacionais e internacionais levados a cabo por associações de divulgação de Astronomia. A própria SPA assume uma preocupação crescente na disponibilização de recursos e contactos à comunidade de professores. Por trás destas dificuldades podem estar os pontos referidos anteriormente, em especial, o carácter multidisciplinar da Astronomia - não só pela abrangência de conceitos de outras ciências mas porque as suas implicações exigem reflexão profunda especialmente num contexto de aprendizagem. Acresce o facto de os conceitos leccionados estarem eles próprios sujeitos a revisões e actualizações próprias de uma ciência em constante evolução que não se compadecem com o ritmo de execução/revisão dos manuais escolares, colocando mais uma vez o professor numa posição chave que, mal enfrentada, pode levar a confusões graves. É assim de extrema importância pensar programas curriculares bem definidos e fundamentados, assim como elaborar e disponibilizar material de apoio adequado ao aprofundamento dos conceitos e das repercussões dos mesmos.

Estes pontos que destacámos e que consideramos serem os mais importantes, conferem ao ensino da Astronomia um papel fundamental na formação dos alunos e não podem ser relegados para segundo plano.



Linhas orientadoras e objectivos do ensino da Astronomia

O grupo de trabalho da SPA para a revisão de linhas orientadoras e programas curriculares elaborou um conjunto de recomendações para o ensino da Astronomia e respectivos programas curriculares que passamos a apresentar:

 

  • Deve ser dada importância aos conceitos e noções que permitam a aplicação em vários domínios da Astronomia e/ou noutras áreas do saber e que levem a um mais profundo conhecimento sobre os fenómenos (por exemplo, perceber que Vénus também sofre de efeito estufa ou a razão de todos os planetas gigantes terem anéis). Deste modo a abordagem dos temas não deve ser “enciclopédica” (por exemplo ter como objecto de avaliação a enumeração das características de todos os planetas do sistema solar).

  • Os conteúdos escolhidos devem sê-lo criteriosamente e a ordem de exposição (adoptada nos manuais escolares) ter uma linha bem definida: apresentar como ponto de partida aquilo que está próximo, o quotidiano, o facilmente relacionável e só depois partir para situações mais longínquas (no tempo e no espaço), menos “palpáveis”. Tal não acontece nos programas em vigor. Acresce ainda que uma ordem de apresentação mal estruturada corre o risco de relegar os conceitos mais importantes para o fim, retirando-lhes o carácter fundamental que eles possam ter para esta e outras áreas (por exemplo, a distinção entre massa e peso e a respectiva ligação com a gravidade, eixo central na Astronomia).

  • Por outro lado uma vez que os temas relacionados com a Astronomia poderão ser úteis para fazer a ponte para conteúdos de outras ciências (o uso de trigonometria simples para avaliar distâncias na Terra ou entre a Terra e outros astros, é apenas um exemplo), será imprescindível uma certa flexibilidade para que o professor possa ter a liberdade de gerir a ordem de explanação da forma que julgar mais adequada sem, contudo, nunca perder os objectivos de vista: ensinar Astronomia.

  • A componente observacional que até há pouco tempo poderia ser considerada limitada à observação solar dado que os períodos lectivos são, regra geral, em regime diurno, deixou de o ser com a possibilidade da utilização de telescópios robóticos e bases de imagens recolhidas por instrumentos de todo o mundo. Este e outros exemplos permitem levar às salas de aula métodos modernos de ensino das ciências recorrendo às novas tecnologias, dotando os professores e estudantes de um amplo espectro de competências. As inúmeras bases de dados astronómicas e ferramentas disponíveis gratuitamente na internet permitem ainda uma abordagem científica dos conteúdos que permitem apreender conceitos fazendo ciência. As ferramentas existentes para simulação dos céus e de fenómenos astronómicos são inúmeras e muito apelativas, permitem ao professor abordar os conceitos ou fenómenos utilizando métodos de aprendizagem por inquérito ou investigação, fazendo uma introdução muito próxima do real método científico. A Astronomia assume-se assim como uma verdadeira ciência experimental.

  • Um programa curricular deverá contemplar "duas" perspectivas que se complementam: a "Astronomia cultura" e a "Astronomia estruturante". A Astronomia cultura: desta fazem parte os tópicos da Astronomia observável a olho nu e que fazem parte do que vulgarmente se chama "cultura geral" (noite e dia, estações do ano, fases da lua, eclipses, a cor do céu, constelações, calendários, etc.). A “Astronomia estruturante”: a Astronomia como sustentação às outras disciplinas - Física, Química, Geologia, Matemática, História, Filosofia, Biologia - onde os temas são colocados para melhor materializar os conceitos, sempre no contexto da ilustração de um dado conceito através de exemplos astronómicos (por exemplo: movimentos do planetas para falar de cónicas; a estrutura de Io para falar das erupções vulcânicas; a temperatura efectiva de estrelas quando se fala na relação entre cor e temperatura, etc..) e nunca como simples “inclusão”. Implementar esta perspectiva carece, obviamente, de uma boa coordenação entre as diversas áreas do saber por forma a potenciar os resultados.

Apreciação do programa curricular em vigor

As indicações dadas para o terceiro ano de escolaridade são vagas mas ainda que devidamente desenvolvidas serão parte muito reduzida do que se poderia e deveria explorar num primeiro ciclo de ensino básico. Em relação ao décimo ano de escolaridade, as referências à Astronomia estão inseridas num contexto de leccionação de conteúdos da área da Química e carecem dos cuidados decorrentes da concretização das linhas orientadoras já descritas acima.
O actual programa curricular do sétimo ano de escolaridade, o único do ensino básico e secundário com uma parte explicitamente dedicada à Astronomia apresenta, na opinião da SPA, uma linha expositiva errada, começando com ideias complexas e algumas não completamente estabelecidas pela comunidade científica e terminando com conceitos fundamentais (como por exemplo a distinção entre massa e peso). Um dos sintomas desta situação é a frase muitas vezes recorrente em manuais escolares "Como iremos aprender no capítulo seguinte... ". A desconexão entre os capítulos de Astronomia e os de Física, onde os conceitos essenciais de uma área são introduzidos após serem necessários na outra torna a aprendizagem difícil e fragmentada (por exemplo: os conceitos simples de cinemática são essenciais à compreensão dos movimentos dos astros).
Existe uma falta de hierarquização dos conceitos e conteúdos. É essencial haver uma separação entre conceitos de cultura e conceitos de exploração mais profunda: a importância da apresentação de cenários possíveis na evolução do universo, por exemplo, não deve ser confundida com o modelo padrão habitualmente aceite pela comunidade científica; a classificação de galáxias não é tão importante como saber de que são constituídas.
Apresenta ainda algumas carências pedagógicas: a ausência da ideia de que as unidades devem adequar-se aos problemas em questão, explicando que as grandezas físicas são as mesmas independentemente das unidades usadas e a falta de ênfase no carácter finito da velocidade da luz, são dois exemplos.
A própria apresentação de alguns dados, ainda que como simples curiosidade, deve ser feita em unidades com o que o aluno se consiga relacionar (não faz sentido apresentar a massa de Júpiter em quilogramas, mas sim em massas terrestres ou, num contexto de formação de estrelas, em massas solares).
Finalmente a falta de rigor científico em certos conceitos de elevada importância (por exemplo a distinção entre estrela e planeta ou a confusão das escalas de espaço e das respectivas estruturas - uma galáxia não se pode colocar na mesma escala que um pulsar) torna a transmissão de conhecimentos desordenada e frágil.



Proposta de conteúdos curriculares por grau de ensino

1º ciclo do Ensino Básico

Na perspectiva "Astronomia cultura": O que é a Astronomia?; Translação e rotação da Terra e outros planetas; Ciclo dia/noite; Estações do ano; Lua e fases da Lua; “Conceitos populares” como estrela da manhã/tarde O que é o Sol?, Eclipses

 

3º ciclo do Ensino Básico

Na perspectiva "Astronomia estruturante": O que se vê no céu nocturno; A cor do céu; O que é um Arco-íris; Translação e rotação da Terra e outros planetas; Leis de Kepler (matematização da Natureza), Trânsitos de planetas; Gravidade; Lua e o diâmetro "observável" da Lua; Efeito de Marés; O que é o Sol; Ciclo e actividade solar; Auroras; Planetas e outros corpos celestes; Concretização do método científico através do uso do tema Exo-planetas; Sistema solar, origem e evolução; Estrelas, constelações e asterismos; Olhar para o passado; Via láctea e outras galáxias; Escalas e distâncias; Unidades astronómicas. Paralelamente deverá ser contemplado o ensino experimental tradicional assim como o uso de bases de dados e telescópios remotos como fonte de informação para uma introdução ao método científico e sua aplicação.
Na perspectiva "Astronomia cultura": A Astronomia noutros tempos, a Astronomia em várias civilizações; Modelos de sistemas geocêntrico e heliocêntrico; Observações com e sem telescópios; Instrumentação actual; Exploração espacial

 

Ensino Secundário

Na perspectiva "Astronomia estruturante": O interior do Sol; Vida e morte das estrelas; Nucleossíntese estelar, Formação de elementos pesados; Cronologia do Universo; Modelos cosmológicos de evolução Na perspectiva "Astronomia cultura": Vida no Universo/Zonas Habitáveis

 

A posição da Sociedade Portuguesa de Astronomia

A SPA gostaria de reforçar a completa disponibilidade em colaborar com o Ministério no processo de reformulação curricular tendo já formado um grupo de trabalho para o efeito. O grupo de trabalho engloba pessoas com diferentes experiências profissionais e ligações à divulgação da cultura científica, criação de conteúdos e ferramentas, formação de professores, docência a nível superior e investigação científica (ver constituição em anexo). Esta colaboração poderá ser efectuada a nível dos conteúdos científicos, na procura da relação interdisciplinar com outras ciências e da elaboração e planificação de materiais de apoio ao estudante e ao professor.



Constituição de grupo de trabalho:

Alexandre Aibéo (Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Viseu); Ana Mourão (Instituto Superior Técnico); André Moitinho (Universidade de Lisboa); Fernando Pinheiro (Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra); Joana Ascenso (European Southern Observatory - ESO); João Fernandes (Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra); João Miguel Ferreira (Universidade dos Açores); Jorge Grave (Centro de Astrofísica da Universidade do Porto); Orfeu Bertolami (Faculdade de Ciências da Universidade do Porto); Pedro Augusto (Universidade da Madeira); Pedro Russo (Universe Awareness International Project Manager); Paulo Garcia (Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto); Rosa Doran (Núcleo Interactivo de Astronomia); Sónia Anton (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa); Victor Bonifácio (Universidade de Aveiro).